segunda-feira, 10 de julho de 2017

Pai Nosso



"O meu primeiro amigo iraquiano foi um taxista do nosso hotel. Um homem todo contente por ter tanques americanos às portas do Al-Rashid onde estacionava o calhambeque a que chamava táxi. Afeiçoei-me a ele, conheci-lhe a mulher e os filhos, era o meu fixer, o meu motorista e intérprete.

Tinha um retrato da equipa do Benfica na parede da casa, uma foto a preto e branco com a águia benfiquista de asa aberta. Adorava o Eusébio. O Benfica tinha vindo uma vez jogar a Bagdade. Ele era um jogador de bola de trapos e pôde admirar o ídolo de perto. O mundo é mais curto do que pensamos, é um elástico que regressa ao ponto donde foi esticado. Em plena guerra, com os canhões apontados, o iraquiano só falava do Eusébio, como se estivesse tudo no sítio.

Acabou assassinado na guerra seguinte, a de 2003. Quando o Iraque virou um talho. O corpo foi devolvido, esburacado por uma broca. Torturado. Era um velho, aqui é-se velho aos cinquenta anos. Era um sunita casado com uma xiita. Tornou-se pecado mortal e sentença de morte. Enforcaram Saddam e o Iraque foi devolvido às seitas e às tribos.

Não sei o que aconteceu à fotografia do Benfica. A mulher mudou de casa e de bairro. Pode ter sido assassinada. Pobre Yusuf. Um amigo dos portugueses. Foi-me muito útil. Um tipo de confiança. E tudo à conta do Eusébio. Aqui morre-se cedo e morre-se mal."

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