quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Fim de carreira

Provavelmente nunca contei isto a ninguém, mas eu já ganhei por 5 vezes a Champions League. Mentira: a Taça dos Clubes Campeões Europeus. Perdi duas finais também, mas isso deveu-se ao acumular na barriga de pães com tulicreme e manteiga, levando-me a falhar os penalties decisivos por clara dor de estômago e desconcentração na hora de apontar por duas vezes (e em dias consecutivos!) os lances capitais do jogo. A bola não quis dar-me a alegria das 6ª e 7ª taças por capricho: na primeira, saiu alta demais, esvoaçando por cima do muro, indo rebolar pela barreira abaixo, apenas parando lá no fundinho, onde o Zé Careira vivia com os dez cães; na segunda vez, eu estava avisado, e decidi – no penalty que decidia tudo – bater a bola a meia altura, com efeito para o lado esquerdo, para que ela não subisse – saiu perfeita, longe do alcance do guarda-redes, mas, infelizmente, vi-a esbarrar-se no vaso com orquídeas. “ao poste!”, gritou o guardião, e eu fiquei na zona de penalty marcado com uma bola branca de cal no chão a olhar o prédio em frente: estava perdida a segunda final da minha vida.
Apesar da desilusão por ter perdido em dias seguidos duas finais dos Campeões Europeus, sabia que o meu trajecto como jogador estava, ainda assim, muito acima do que era esperado. Tinha vencido por 5 vezes o troféu mais ansiado por todos, tinha sido considerado o melhor jogador de todas as 7 finais que havia disputado. Estava na hora de arrumar as botas.
Nesse dia em que a sorte não quis nada comigo, enquanto das varandas dos prédios as pessoas me aplaudiam de pé, enquanto o cão vinha pedir uma festa e consolar-me, no meio do pátio, em cima da linha de meio-campo, eu agradecia aquele apoio incansável ao longo de duas longas semanas àquele público fantástico, agradecia especialmente à senhora que bebia suminhos de laranja na varanda do topo sul, agradecia o apoio incansável daquela empregada que esticava a roupa na varanda da Central e, emocionado, abandonava o campo com o sentido de dever cumprido.
Abandonava o futebol já veterano. Sentia que a minha altura tinha chegado. Os meus 12 anos não me permitiam manter o nível exibicional que até ali tinha deliciado a plateia. Saía triste por abandonar o futebol, mas feliz por tudo o que o futebol me tinha dado. Tive propostas para jogar em campeonatos menores, como o campeonato semanal em Vale de Rãs e o 24 horas no pavilhão do Pego, mas achei, na altura, que o pão com chouriço e o sumol de laranja com que me acenavam para prolongar a minha carreira eram insuficientes. Apesar de tentadores, não os achei suficientes para que a bola continuasse a rodar sob os meus pés. Além disso a família pedia-me encarecidamente que voltasse. Que voltasse a casa. E eu acedi. O jantar já estava frio.

[Este texto já tinha sido postado no meu outro blogue, Um Homem Não Chora, mas achei que fazia sentido recuperá-lo para um lugar mais futebolístico. Qualquer queixa que queiram fazer, façam o favor de se dirigirem ao Paquete de Oliveira deste blogue, que não existe mas que, ainda assim, receberá com agrado e dedicação as vossas palavras.]

9 comentários:

rogerAjacto disse...

Já tinha lido este texto no teu blog e achei fenomenal... A identificação com essa realidade que tão bem retratas é enorme. Também eu tive nos meus pés decisões de campeonatos de importância planetária. Era tão bom...

Catenaccio disse...

Impecável Ricardo. Parabéns pelo texto.

Ricardo disse...

Com esta passagem do texto do outro para este blogue, revi o teu comentário da altura, Roger. Espectacular! :)

Ricardo disse...

Obrigado, Ricardo. Também ganhaste alguma Champions em puto?

Catenaccio disse...

Nunca cheguei a ganhar nenhuma Champions League, pois a concorrência era forte. A 'rua do Parque' tinha executantes de primeira água e, de facto, não era fácil contrariar as estrelas.

Os primeiros tempos foram jogados a central. Aliás, para ser sincero, era mais um líbero. Do tipo de Franco Baresi, pensava eu. A verdade é que os tecnicistas tinham liberdade para jogar mais à frente e eu ficava cá atràs, a comandar a defesa. Durante muito tempo sonhava com o momento em que marcava o golo decisivo. Todavia, não ir à baliza já era um indicador que o futuro era risonho e tinha potencial para algo mais. Na altura, com apenas 5/6 anos, o corpo frágil não aguentava um jogo feito de dribles e correrias.

Com o passar do tempo, fui apurando a técnica e os mais velhos e experientes foram reparando em mim. O processo de renovação também seguia os desígnios do tempo e acabei por conquistar o respeito do capitão de equipa. Quase sempre o melhor jogador. A dada altura, era quase um jogador imprescindível da 'rua Duque de Saldanha'.

Mas, o momento alto foi quando ganhei amizade com os craques da 'rua do Parque' e, aos poucos, fui sendo chamado à equipa principal. Foi o período áureo, onde os golos e os títulos começaram a aparecer. O ringue enchia-se de vários emblemas e sentia um orgulho enorme em jogar ao mais alto nível.

Porém, tudo tem um fim. A minha carreira também acabou relativamente cedo, pois os estudos falaram mais alto. Ficam as recordações das fintas, dos centros bem medidos e da resistência quase inesgotável, onde se jogava por amor à camisola.

Abraço.

Ricardo disse...

Comovente, Ricardo. Adorei!

Grande Abraço!

MédioCriativo disse...

Muito muito muito bom Ricardo. Parabéns.

MédioCriativo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ricardo disse...

Obrigado, Médio. Alguma história ou estória de conquistas da Champions que tenhas, avança. Aqui ou no Gordo. A gerência agradece:)